Há algumas semanas, deparei-me com uma nota sobre o "Evento Paladar" do Estadão, em que se fazia menção ao fato de o Marco Danielle ter servido iogurte numa degustação realizada em São Paulo. Achei tão curiosa a situação que resolvi escrever ao Marco, para ver se eu conseguiria entender o que realmente houve.
Recebi a resposta dele e resolvi compartilhá-la com vocês!
Vejam:
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Ao ler as notícias sobre o "Evento Paladar" publicadas pelo Estadão, muitos têm perguntado por que servimos iogurte aos participantes das minhas palestras, durante a apresentação dos vinhos do Projeto Tormentas. O que teria a ver iogurte com uma degustação de vinhos?
A idéia de comparar um iogurte natural caseiro a um iogurte industrial de morango surgiu como resposta ao risco de apresentar um Chardonnay radicalmente natural a um universo habituado aos chardonnays do mercado. A busca do que convencionou-se tratar como característico da casta causaria frustração, e poderia ofuscar a apreciação pura e simples do vinho apresentado. O Chardonnay 2008 apresentado foi vinificado organicamente - sem nenhum SO2 e sem leveduras comerciais adicionadas. O vinho fermentou a partir da flora de leveduras selvagens das próprias uvas, sem adição de sulfito em todo o processo. A leve oxidação promovida pela ausência de SO2 foi admitida como parte integrante da complexidade natural deste vinho. Sabe-se que os vinhos brancos respondem à falta de SO2 de forma muito mais evidente que os tintos, razão pela qual levam cargas muito maiores deste conservante/anti-oxidante do que levam os tintos. É raríssimo encontrar brancos sem adição de sulfitos - mesmo entre os produtores "bio" mais radicais da Europa. Além disto, existe a moda dos vinhos "frutado-incolores", dupla razão para os brancos em geral causarem mais enxaqueca que os tintos. Impedir a evolução natural da cor em um vinho branco, e tentar preservar longamente suas "notas frutadas" significa "congelar" o vinho quimicamente, privá-lo de sua evolução natural na direção de um amarelo-ouro, com sabores distintos mas nem por isso piores. Pelo contrário, os brancos naturais são mais complexos e menos unidimensioais que os brancos pálidos hiperfiltrados da moda, que forjaram uma espécie de norma.
Este Chardonnay 2008 me remete a alguns brancos "bio" do Vale do Loire, e está entre os vinhos de maior persistência organoléptica que já elaborei. Sua primeira apresentação à imprensa especializada foi no hotel Grand Hyatt São Paulo, dia 05.06.2009, por ocasião das duas palestras que proferi a convite do Jornal Estado de São Paulo, durante o Evento Paladar. Dos oito vinhos que apresentamos (sete tintos e um branco), o Chardonnay 2008 foi o primeiro. Para quem gosta de vinhos naturais, a experiência sensorial que antecedeu esta degustação pode ter sido significativa. Para preparar o espírito e os sentidos à degustação deste branco - totalmente fora dos padrões comerciais vigentes -, propus uma volta ao passado através de um condicionamento sensorial prévio. Uma espécie de regressão. Através de um processo de indução racional, os participantes foram convidados a adentrar um estado de consciência capaz de expurgar todas as referências atuais inculcadas pelos "gostos industriais". Eliminando momentaneamente da memória os gostos forjados pela indústria química, que atualmente representam uma espécie de padrão sintético considerado normal pela maioria, os participantes foram levados a voltar milênios no tempo, para uma era em que o iogurte já era parte importante da dieta e da cultura, mas nem de longe correspondia à bomba química que educa o paladar das nossas crianças - para as quais a única referência sobre iogurte é este preparado artificial - excessivamente doce, colorido, aromatizado e estabilizado por uma série de aditivos químicos.
Para que o Chardonnay 2008 fosse melhor compreendido, então, preparei na noite anterior, no quarto do Hyatt, um belo iogurte caseiro que foi servido no dia seguinte, em um pequeno copinho, ao lado de um iogurte industrial de morango em mesma dose, noutro copinho, para cada um dos participantes. A proposta era entrar neste estado de regressão e purificação através do iogurte. Em resumo, apesar de eu ter preparado os ânimos para um iogurte sem açúcar adicionado, portanto seco e relativamente ácido, o resultado da experiência foi fantástico. O iogurte natural estava realmente divino, de uma delicadeza, aroma e doçura natural inerentes ao puro leite fermentado. Houve quem pedisse para repetir a dose. O copinho com iogurte industrial de morango acabou de lado, intocado, aparentemente desmascarado sob sua espessa camada de maquiagem... Ao menos por alguns minutos, que provavelmente não durarão mais que o tempo daquele encontro, tivemos plena consciência desta grotesca aberração açucarada, colorida, e aromatizada atificialmente que fez parte de nossas infâncias e adolescências; que recebemos de nossos pais e demos aos nossos filhos sem muitos questionamentos, e que convencionamos chamar "iogurte".
A comparação entre os dois iogurtes serviu, resguardadas as devidas proporções, para incitar a uma reflexão sobre o que possa estar acontecendo com o vinho, no processo de infantilização do gosto em que o paladar dos que formam opinião é educado por produtos seguidamente recriados e padronizados pela indústria. Produtos mais puros, naturais ou autênticos, neste contexto, seguidamente são julgados defeituosos ou menos atraentes.
Agradeço ao repórter Luiz Horta o convite do Jornal O Estado de São Paulo para minha participação no "Evento Paladar". Foi um grandeprivilégio e ao mesmo tempo uma honra sua visita na Expovinis para uma longa e fraterna conversa, de onde surgiu o convite. Desde que provou nossos vinhos e ouviu nossa proposta, Horta dedicou-nos um interesse e uma atenção incomuns. Luiz Horta é mais uma Grande Alma, entre as tantas que o Mundo do Vinho tem cruzado em nossa trajetória.
Ao ler as notícias sobre o "Evento Paladar" publicadas pelo Estadão, muitos têm perguntado por que servimos iogurte aos participantes das minhas palestras, durante a apresentação dos vinhos do Projeto Tormentas. O que teria a ver iogurte com uma degustação de vinhos?
A idéia de comparar um iogurte natural caseiro a um iogurte industrial de morango surgiu como resposta ao risco de apresentar um Chardonnay radicalmente natural a um universo habituado aos chardonnays do mercado. A busca do que convencionou-se tratar como característico da casta causaria frustração, e poderia ofuscar a apreciação pura e simples do vinho apresentado. O Chardonnay 2008 apresentado foi vinificado organicamente - sem nenhum SO2 e sem leveduras comerciais adicionadas. O vinho fermentou a partir da flora de leveduras selvagens das próprias uvas, sem adição de sulfito em todo o processo. A leve oxidação promovida pela ausência de SO2 foi admitida como parte integrante da complexidade natural deste vinho. Sabe-se que os vinhos brancos respondem à falta de SO2 de forma muito mais evidente que os tintos, razão pela qual levam cargas muito maiores deste conservante/anti-oxidante do que levam os tintos. É raríssimo encontrar brancos sem adição de sulfitos - mesmo entre os produtores "bio" mais radicais da Europa. Além disto, existe a moda dos vinhos "frutado-incolores", dupla razão para os brancos em geral causarem mais enxaqueca que os tintos. Impedir a evolução natural da cor em um vinho branco, e tentar preservar longamente suas "notas frutadas" significa "congelar" o vinho quimicamente, privá-lo de sua evolução natural na direção de um amarelo-ouro, com sabores distintos mas nem por isso piores. Pelo contrário, os brancos naturais são mais complexos e menos unidimensioais que os brancos pálidos hiperfiltrados da moda, que forjaram uma espécie de norma.
Este Chardonnay 2008 me remete a alguns brancos "bio" do Vale do Loire, e está entre os vinhos de maior persistência organoléptica que já elaborei. Sua primeira apresentação à imprensa especializada foi no hotel Grand Hyatt São Paulo, dia 05.06.2009, por ocasião das duas palestras que proferi a convite do Jornal Estado de São Paulo, durante o Evento Paladar. Dos oito vinhos que apresentamos (sete tintos e um branco), o Chardonnay 2008 foi o primeiro. Para quem gosta de vinhos naturais, a experiência sensorial que antecedeu esta degustação pode ter sido significativa. Para preparar o espírito e os sentidos à degustação deste branco - totalmente fora dos padrões comerciais vigentes -, propus uma volta ao passado através de um condicionamento sensorial prévio. Uma espécie de regressão. Através de um processo de indução racional, os participantes foram convidados a adentrar um estado de consciência capaz de expurgar todas as referências atuais inculcadas pelos "gostos industriais". Eliminando momentaneamente da memória os gostos forjados pela indústria química, que atualmente representam uma espécie de padrão sintético considerado normal pela maioria, os participantes foram levados a voltar milênios no tempo, para uma era em que o iogurte já era parte importante da dieta e da cultura, mas nem de longe correspondia à bomba química que educa o paladar das nossas crianças - para as quais a única referência sobre iogurte é este preparado artificial - excessivamente doce, colorido, aromatizado e estabilizado por uma série de aditivos químicos.
Para que o Chardonnay 2008 fosse melhor compreendido, então, preparei na noite anterior, no quarto do Hyatt, um belo iogurte caseiro que foi servido no dia seguinte, em um pequeno copinho, ao lado de um iogurte industrial de morango em mesma dose, noutro copinho, para cada um dos participantes. A proposta era entrar neste estado de regressão e purificação através do iogurte. Em resumo, apesar de eu ter preparado os ânimos para um iogurte sem açúcar adicionado, portanto seco e relativamente ácido, o resultado da experiência foi fantástico. O iogurte natural estava realmente divino, de uma delicadeza, aroma e doçura natural inerentes ao puro leite fermentado. Houve quem pedisse para repetir a dose. O copinho com iogurte industrial de morango acabou de lado, intocado, aparentemente desmascarado sob sua espessa camada de maquiagem... Ao menos por alguns minutos, que provavelmente não durarão mais que o tempo daquele encontro, tivemos plena consciência desta grotesca aberração açucarada, colorida, e aromatizada atificialmente que fez parte de nossas infâncias e adolescências; que recebemos de nossos pais e demos aos nossos filhos sem muitos questionamentos, e que convencionamos chamar "iogurte".
A comparação entre os dois iogurtes serviu, resguardadas as devidas proporções, para incitar a uma reflexão sobre o que possa estar acontecendo com o vinho, no processo de infantilização do gosto em que o paladar dos que formam opinião é educado por produtos seguidamente recriados e padronizados pela indústria. Produtos mais puros, naturais ou autênticos, neste contexto, seguidamente são julgados defeituosos ou menos atraentes.
Agradeço ao repórter Luiz Horta o convite do Jornal O Estado de São Paulo para minha participação no "Evento Paladar". Foi um grandeprivilégio e ao mesmo tempo uma honra sua visita na Expovinis para uma longa e fraterna conversa, de onde surgiu o convite. Desde que provou nossos vinhos e ouviu nossa proposta, Horta dedicou-nos um interesse e uma atenção incomuns. Luiz Horta é mais uma Grande Alma, entre as tantas que o Mundo do Vinho tem cruzado em nossa trajetória.
Chardonnay sem SO2 do Marco Danielle.Com certeza já estou na fila para degustar.Os amigos sabem da minha preferência por brancos diferentes.
ResponderExcluirEu adoro vinho branco.. mas então é por causa do SO2 e conservnates mil que eu tenho tanta dor de cabeça com eles?
ResponderExcluirClaudia