segunda-feira, 6 de abril de 2009

Um papo com Marco Danielle

Publiquei, no dia 27 de março, no jornal Comércio do Jahu, um bate-papo que tive com o polêmico produtor Marco Danielle (foto), poucos dias antes. Ali, por restrições de espaço, não pude publicar a íntegra da entrevista que fiz com Marco. No jornal CirculandoAqui, de Cambará (PR), foi possível colocar a íntegra. Mas, como ainda não está disponível o site do Circulando, publico aqui o texto integral:

Como você vê a produção de vinhos finos no Brasil nos últimos 15 anos?

Marco Daniele - Elaborar vinhos hedonistas é um fenômeno relativamente recente no mundo, e denota um aumento generalizado da qualidade de vida global. Nos últimos tempos, as camadas mais privilegiadas da população passaram a beber menos e melhor. O período citado remete a 1994, quando nossos vinhos ditos finos ainda eram rústicos e restritos a poucas opções. Um divisor de águas, na época, foi a importação dos Liebfraumilch industriais, que apontaram à classe média um novo horizonte rumo aos "vinhos de prazer". O segundo momento foi o boom de produção nacional norteada para grandes volumes de vinhos tecnológicos agradáveis e "sem defeitos", na onda da demanda interna desencadeada pelos primeiros importados voltados ao grande público, cuja opção mais freqüente até então era pelo vinho de garrafão. Nesta transição do garrafão à garrafa, madeira de origem obscura, chips e outros compostos comerciais simulando o carvalho passaram a ser usados sistematicamente no afã de imitar o Chile e seu sucesso comercial junto ao público iniciado - para o qual o gosto de madeira, a concentração e o álcool elevado eram sinônimos de qualidade e requinte. O abuso destas práticas causou anos de atraso na formação de um conceito e de uma identidade própria para o novo vinho brasileiro. O século chega ao fim vendo a vinicultura nacional orientada para grandes volumes. A moda dos vinhos de garagem ou "bodegas boutique" não aflora no Brasil como em outras partes do mundo, onde pequenos produtores artesanais despontam representando a expressão maior de seus terroirs, são altamente valorizados, e seus vinhos viram febre. Desta forma, o público brasileiro segue desconhecendo o potencial de seu próprio terroir. O movimento em prol dos vinhos naturais, em franca expansão pela Europa, também parece não encontrar adeptos entre os produtores do Brasil. Neste ínterim, o segmento mais refinado da nova geração de enófilos evolui, e migra para os vinhos clássicos europeus - entre eles muitos orgânicos e biodinâmicos. Os chilenos amadeirados e suas cópias locais perdem interesse.

Finalmente, o próprio Chile reduz consideravelmente a madeira caricatural em seus vinhos superiores, em resposta ao refinamento deste novo segmento de consumidores pelo mundo afora. Limitar o uso indiscriminado de madeira passa a ser uma tendência global em enologia de qualidade. Surge então, na primeira metade da presente década, uma nova geração vinicultores que irá revolucionar o conceito de vinho brasileiro partindo em busca de melhores terras, como por exemplo os Carraro. Cientes de que bons vinhos só podem partir de bons vinhedos, colhem uvas excepcionais em Encruzilhada do Sul, produzem volumes mais moderados e apostam em vinhos "premium" sem madeira - algo inovador. Só assim, finalmente, surgem vinhos mais francos, que apontam traços mais puros e menos deturpados do terroir, sinalizando para o grande potencial vitivinícola do Brasil. Vinhos que expressam terra e fruta com mais transparência, livres dos efeitos nefastos da madeira má empregada ou de má qualidade, e de suas variantes sintéticas. 2004 marca as primeiras safras em Encruzilhada do Sul, e um salto qualitativo imenso na história do vinho brasileiro. Ali, maturação plena passa a ser algo sistemático, e não um fenômeno raro. Bem conduzidas, em ponto de maturação não excessivo, estas uvas podem gerar vinhos que, às cegas, confundem-se com grandes clássicos europeus. Mas não basta uvas perfeitas: para obter o máximo de uma boa matéria-prima é preciso empenho de artesão. Os primeiros Tormentas refletem este novo caminho, além de uma vinicultura orientada para os vinhos naturais.

Qual o objetivo de seus projetos vinícolas? Em que aspectos eles são diferentes do que se faz habitualmente no país?

MD - Defendo a tese de que temos mais familiaridade com o terroir europeu do que a maior parte do Novo Mundo vinícola. Steven Spurrier, um dos mais célebres críticos de vinhos vivo, atribuiu 18/20 pontos para o Tormentas Premium 2004, que considerou "totalmente Médoc em estilo" e comparou a um Pauillac/St-Estèphe. Os Tormentas Premium 2007 e 2008 chegaram ainda mais perto deste ideal clássico, restando a acidez moderada e a omissão da madeira os principais pontos a aprimorar. Quanto à maior acidez dos grandes clássicos europeus, precisamos reduzir a absorção de potássio, que induz a uma maior precipitação tartárica e conseqüente perda de acidez em nossos vinhos. A supressão dos fertilizantes à base de potássio - e o caminho na direção dos vinhos mais naturais - podem ser a resposta. Quanto às barricas, trata-se de uma guerra aparentemente perdida pelo Novo Mundo. Um carvalho leva de 150 a 230 anos para fornecer madeira. É tolice acreditar que os franceses devastarão suas florestas (e ainda que o fizessem seria impossível abastecer o mundo ad infinitum) ou que barricas que nos vendem por francesas tenham qualquer relação com as usadas pelos grandes ícones da França. Basta comparar os vinhos saídos das duas fontes para chegar à conclusão. Enquanto continuarmos insistindo em barricas de origem duvidosa, nossos melhores vinhos seguirão prejudicados. O segredo da barrica ideal parece seguir guardado a sete chave pelos franceses, e representa o Santo Graal dos que tentam elaborar grandes vinhos clássicos ao redor do mundo. Os poucos bem sucedidos neste desafio parecem participar, de alguma forma, deste secreto club des cinq. Sou refratário ao uso de barricas, mas se preciso for o farei, em resposta a quem ainda duvida que é possível fazer, no Brasil, vinhos à altura dos melhores e mais respeitados do mundo.

Quanto à diferença entre os meus projetos e o que se faz habitualmente no país, confesso que minha atenção está tão focada na Escola Clássica Européia, que não tenho elementos para julgar o que se faz no Brasil. Haja vista a preferência declarada da crítica e o alto valor atribuído aos grandes vinhos clássicos europeus, me parece bem mais edificante conhecer estes vinhos e entender como são feitos, antes de tomar por referência os vinhos nacionais. Esta tem sido minha postura, e talvez a primeira maior diferença entre meus objetivos e os dos demais produtores locais. O que posso dizer com certeza é que não conheço nenhum outro produtor nacional que tenha suprimido o conservante INS 220 de algum de seus vinhos. Outro exemplo é a minha paixão pelos grandes Pinots da Bourgogne. Tenho provado grandes clássicos, e ano após ano acompanhado de perto as safras de Pinot Noir em Encruzilhada, tentando chegar à maturação ideal. A produção nacional de Pinot Noir de qualidade é quase nula, e ano após ano não alcancei uma matéria-prima razoável. Finalmente em 2009 cheguei mais perto deste objetivo, e arrisquei um primeiro vinho. Até agora a expectativa é boa, e se o resultado se aproximar da minha experiência pessoal em Bourgogne, o vinho será lançado. Senão, o projeto será protelado. Saber se um vinho merece ou não ser apresentado é fundamental. É esta minha obstinação, e meu objetivo. Ainda não sei de nenhum Pinot Noir bem sucedido em todo o Cone Sul, no que concerne a delicadeza e a sutileza de um Bourgogne. A segunda maior diferença é que meus projetos não estão focados em volume de produção, nem em resultados comerciais imediatos, mas sim em conceito. Mesmo contando com 20 hectares de vinhedos exclusivos no novo projeto em Campos de Cima da Serra, e um considerável aporte de capital, a atividade segue sem rendimentos, exigindo uma enorme paciência, motivação, e um investimento sem fim. O preconceito contra o vinho nacional (herdado por erros de terceiros no passado) impera e emperra nos segmentos mais conservadores e prepotentes da formação de opinião, sendo outro entrave a exigir um estoicismo sem fim de quem tenta elaborar grandes vinhos em solo nacional. Trata-se de uma luta solitária.


O que o levou a eleger Encruzilhada do Sul e Campos de Cima da Serra como a origem das uvas utilizadas na produção de seus vinhos?

MD - Em função da pluviometria menor, da boa drenagem do solo, da altura privilegiada em relação à fronteira, e do clima mais árido, Encruzilhada do Sul é meu terroir preferido no Brasil. Encruzilhada oferece uma grande versatilidade vitivinícola, dos espumantes aos tintos de longa guarda, de vinhos de estilo Europeu a vinhos de estilo Novo Mundo. Em Campos de Cima da Serra ainda é muito cedo para conclusões definitivas, mas o sucesso do Prelúdio 2007 é um bom indicativo da qualidade do terroir - de perfil fortemente europeu. Ao provar este vinho no restaurante de Alex Atala recentemente, Ed Motta me telefonou entusiasmado. De todos os meus vinhos, é o segundo que ele elogia efusivamente após o Minimus Anima 2005.


Qual é sua avaliação sobre a participação na série Mondovino (que foi ao ar no Brasil pela TV Bandeirantes)?

MD - Foi uma honra ser convidado a participar de Mondovino Parte II, não apenas pelo reduzido número de personagens convidados a representar o vinho brasileiro face às centenas de produtores do país, mas principalmente pelas legendas internacionais que figuraram no primeiro episódio da série, do qual sou fã.


Alguns de seus críticos alegam que seus vinhos são excessivamente caros. O que você tem a dizer sobre isso?

MD - Em sua primeira viagem aos EUA, em 1973, Angelo Gaja contatou mais de trinta distribuidores. Nenhum demonstrou interesse. Vinte anos depois, Gaja exportava três quartos de sua produção para a Europa e a América, e colecionadores de Nova Iorque e Washington se digladiavam para comprar seus vinhos a preço de ouro. Constantemente convidado a justificar seus preços, respondia que era aos clientes que deveriam perguntar porque aceitavam pagar tanto. Acho que eu não saberia responder a esta pergunta melhor que Gaja.


Na sua avaliação, até que ponto a valorização do dólar cria uma oportunidade para os produtores brasileiros?

MD - Meu prazer está no objetivo de elaborar excelentes vinhos naturais em solo nacional, e incluir o Brasil no hall dos países produtores de vinhos emblemáticos, não importando a paciência e o estoicismo necessários para tanto. Recentemente fui entrevistado pela imprensa uruguaia, e procurado por importadores de vinhos naturais da Inglaterra e Argentina. Acho que estou fazendo a minha parte enquanto brasileiro. Se a imprensa e os enófilos fizerem a sua, o país certamente sairá ganhando, pois um projeto não se sustenta sem demanda, e para que haja demanda é preciso divulgação. Já a questão comercial, em si, não me fascina realmente. Como não produzo em escala, e meus vinhos são caros em termos mundiais, as oscilações cambiais não importam tanto quanto para quem produz grandes volumes e precisa escoar a produção frente a uma enorme competição mundial. A partir de determinados preços, trabalha-se para nichos exclusivos e específicos de mercado, para os quais a oscilação cambial talvez tenha menor impacto. Para vencer junto a este segmento de clientes só existe um caminho, que não implica necessariamente o preço: qualidade máxima e reconhecimento internacional. Enquanto a situação cambial oscila ao sabor dos ventos, estes parâmetros mantêm-se sólidos ao longo do tempo.

Um comentário:

  1. Excelente entrevista! ADORO essa maneira direta e franca como o Danielle fala.

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