domingo, 18 de março de 2012

A polêmica das salvaguardas ao vinho brasileiro

Embora a discussão já tenha aparecido na mídia há algum tempo, foi com a publicação da Circular nº 9, de 14 de março de 2012, da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), que a polêmica relativa à possível aplicação de salvaguardas ao vinho nacional realmente eclodiu com força, proporcionando acalorados debates na internet, inclusive em mídias sociais, como o Facebook.

Muito se fala a respeito, mas nem sempre fica claro o que está acontecendo. Afinal, o que são as tais "salvaguardas"? De uma maneira simples, pode-se dizer que são medidas que um país toma para proteger sua indústria interna em relação a prejuízos ou ameaças causadas por produtos importados. Uma matéria esclarecedora foi publicada no site da Revista Menu, que entrevistou a advogada Carol Monteiro de Carvalho, especialista no assunto. Ao ser questionada sobre quais seriam as medidas possíveis, ela esclareceu que "O primeiro ponto é o adicional no imposto de importação, que pode chegar ao máximo a 55% (hoje é 27%). O governo pode também adicionar um valor fixo a ser cobrado de toda importação de vinho, que pode ser por toda a caixa de vinho ou por garrafa. É possível também que o governo opte por estabelecer cotas para a entrada de vinhos importados no Brasil.".

No entanto, a mesma Revista Menu obteve junto a Felipe Hees (diretor do Departamento de Defesa Comercial do MDIC) a informação de que, se houver a aplicação de salvaguarda, "ela será na forma de cotas para a importação de vinhos por países.".

De qualquer modo, ainda não há qualquer definição se haverá ou não alguma salvaguarda. O que ocorreu com a publicação da Circular foi o desencadeamento de uma investigação que pode ou não levar a isso. Os interessados poderão se manifestar no curso dessa investigação. Esse processo teve início com a apresentação de uma petição pelas seguintes entidades: o Instituto Brasileiro do Vinho – IBRAVIN, a União Brasileira de Vitivinicultura – UVIBRA, a Federação das Cooperativas do Vinho – FECOVINHO e o Sindicato da Indústria do Vinho do Estado do Rio Grande do Sul – SINDIVINHO.

Diante disso, neste momento, cabe analisar as razões contidas na petição, que foi apresentada em 1o de julho de 2011. Os argumentos fundamentais da petição, assim como o resultado da análise preliminar feita pela SECEX - o que motivou a instauração da investigação, podem ser verificados no anexo da Circular.

A principal linha de argumentação analisada diz respeito ao prejuízo causado à indústria nacional do vinho em virtude do aumento das importações de vinho (excluindo Mercosul e Israel) desde 2006, sendo que o incremento mais problemático teria havido a partir de meados de 2010, fruto, entre outros motivos, da crise financeira internacional que atingiu outros mercados. Entre 2006 e 2010, o aumento do volume importado foi de 56,3%, sendo que, apenas entre 2009 e 2010, o crescimento foi de 27,8%. Ainda entre 2006 e 2010, a participação das importações no mercado brasileiro do vinho subiu de 67,1% para 78,7%, enquanto a fatia do vinho nacional declinou de 32,9% para 21,3%. Uma série de outros elementos econômico-financeiros são analisados, com a conclusão de que existe "nexo de causalidade"(relação direta entre uma coisa e outra).

Pois bem. Os argumentos contidos na petição podem até fazer algum sentido, do ponto de vista econômico. Todavia, partem de uma premissa absolutamente equivocada: dar ao vinho a condição de commodity, pois as análises são feitas sob o prisma quantitativo e nunca qualitativo. Tratar o vinho como trigo, bauxita ou minério de ferro só pode levar a uma conclusão irremediavelmente errada. A "similaridade", atributo indispensável para se requerer a adoção de salvaguardas, tem que ser vista com extrema cautela quando o assunto é o vinho. Um fusca é "similar" a um Maserati ou a um Aston Martin. Afinal, os três tem rodas, pneus, e motor. Tamanha a obviedade do absurdo da comparação que se mostra desnecessário continuar o raciocínio.

Esse tratamento de commodity fica evidenciado num trecho de uma reportagem da Folha, em que "Os produtores nacionais afirmam que não existe chance de o mercado brasileiro ficar desabastecido com a restrição de importações.". Desabastecido??? Imagine que, uma vez aplicado um regime de cotas, você deixe de encontrar um determinado Barbaresco. Então, vai bastar você substituí-lo por um vinho da Serra Gaúcha produzido com Nebbiolo! Claro que estou fazendo uma piada de mau gosto. Trata-se de um singelo exemplo para mostrar que não se pode abordar esse assunto apenas pelo viés da quantidade. E não se trata de "melhor" ou "pior". Quem tem mínima noção sobre vinho, sabe que eles são simplesmente diferentes entre si, considerando-se a origem. A riqueza e o encanto do vinho derivam justamente disso! E a "substituição" não é, portanto, algo tão singelo. Se a petição tivesse sido feita por entidades alheias ao mundo do vinho, haveria o benefício da dúvida. Vinda de onde veio, a omissão não pode ser encarada como mero esquecimento.

Outro "esquecimento" relevante diz respeito à produção nacional de espumantes, que cresceu nada menos que 40,7% entre 2005 e 2010, em volume. A sabida qualidade desse tipo de vinho, aliada a preços competitivos, contribuiu decisivamente para que isso acontecesse. Se a mesma coisa não ocorreu com os demais tipos de vinho, os esforços devem ser empreendidos para que também ocorra. A desoneração tributária já seria um bom começo. Restringir a importação de vinhos, seja por meio de aumento de impostos ou pelo estabelecimento de cotas parece que vamos apenas "tirar o sofá da sala".

Um ponto contido na petição diz respeito a uma série de melhorias prometidas pelas entidades, caso sejam adotadas as salvaguardas. Vão desde “Reestruturação competitiva do segmento produtor de vinhos finos brasileiros" até "Programa de Promoção e Marketing". O primeiro soa mais como uma confissão da evidente falta de competitividade. Quanto ao segundo, será necessária uma "fábula" de dinheiro só para desfazer o estrago que essa petição fará à imagem do vinho nacional. Afinal, não conheço consumidores que gostam de ser coagidos a consumir determinado produto. Para se ter uma idéia, já circulam na internet movimentos apoiando boicote aos vinhos nacionais em virtude da "feliz" iniciativa dos produtores brasileiros. Particularmente, acho que somente com a adesão de atacadistas, supermercadistas, lojistas e restaurantes um boicote pode fazer algum efeito. Se isso realmente ocorrer, os produtores nacionais terão trocado uma leve cefaleia por uma asfixia potencialmente fatal.

Também há uma petição pública contra as medidas de salvaguarda.

Diante de todo esse quadro, resta saber o que ocorrerá ao fim da investigação. Como consumidor de vinhos, torço para que não se adote qualquer salvaguarda. Caso sejam adotadas, a torcida é no sentido de que sejam as menos deletérias.

25 comentários:

  1. Brilhante texto, obrigado!

    ResponderExcluir
  2. Guilherme, muitos textos apaixonados, de um lado e de outro, têm sido publicados.

    gostei de seu texto e das ponderações.

    saúde!

    Gil Mesquita
    www.vinhoparatodos.com

    ResponderExcluir
  3. Guilherme,
    Ha outra contradicao, que se relata, quanto ao aumento do descaminho, mesmo depois do famigerado selo fiscal, pedido pelas mesmas associascoes e entidades.
    Quem nao tem competencia, que nao se estabeleca
    Abracos de luz(sem acentos)

    ResponderExcluir
  4. Existem 2 grandes equívocos na motivação deste Regime de Salvaguarda.
    1) não é claro que haverá a substituição de um vinho importado por um nacional no consumo do brasileiro. O que provavelmente irá ocorrer é uma redução no consumo em geral e a substituição de importados de qualidade por porcarias vendidas a granel;
    2) O Regime de Salvaguarda tem o objetivo de proteger a industria nacional "por um período" para que o fabricante brasileiro consiga igualar em preço e qualidade o produto estrangeiro. Isso nunca ocorrerá, pois:
    a) o vinho é totalmente dependente do terroir
    b) o alto custo do vinho brasileiro não é devido a falta de produtividade, e sim pelos custos da cadeia toda, incluindo impostos, custo de capital, infraestrutura cara (energia, transporte), entre outros fatores.

    ResponderExcluir
  5. Caro amigo Guilherme,

    Seu exemplo sobre as commodities foi infeliz para ilustrar seus argumentos. Se eu quero comprar uma Maserati, tenho sim de pagar altíssimos impostos e altíssimos preços.

    Pelo que eu conheço, os vinhos que você bebe não são commodities, claro!, mas os vinhos do dia-a-dia que inundam nosso mercado e que tanta predação causam à produção nacional, são sim.

    Abraços,

    Oscar

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro amigo Oscar,

      Primeiramente, obrigado pela visita e pelo comentário. Mesmo discordando da sua posição, eu a respeito.

      Quanto ao exemplo da Maserati, ele tem que ser interpretado no contexto em que foi colocado. Usei apenas como um elemento retórico para mostrar como as coisas similares podem ser diferentes entre si, qualitativamente, a despeito de manterem certa "similaridade".

      Concordo com você quanto aos vinhos de baixa qualidade que inundam o mercado. Apesar desse discurso ser recorrente entre os produtores nacionais, o pedido de salvaguarda, tal como posto, não faz essa distinção.

      De qualquer modo, acho salutar o apronfundamento do debate, mantendo o bom nível.

      Um abraço,

      Excluir
  6. Excelente texto Guilherme. Deixar ao governo a incubência de que tipo de salvaguardas devem serem implementadas é tão confiável quanto deixar que o Conde Drácula gerencie um banco de sangue. O real hoje está supervalorizado frente ao dólar. Esse fato somado ao custo Brasil(carga tributária elevada, malha rodoviária precária, etc) torna qualquer produto nacional pouco competitivo. Portanto, o problema é estrutural, não apenas relativo ao vinho.

    ResponderExcluir
  7. Os lobistas das produtoras gaúchas são péssimos. Não conseguem nada com o governo com relação à diminuição de imposto sobre o vinho nacional e fazem pressão para que seja feito algo e presenciamos essa verdadeira palhaçada.
    Primeiro, os produtores precisam se organizar de verdade, pois quem já trabalhou nessas empresa, como eu, sabe o quanto eles querem é proteger cada um a sua produção e não estão ligando muito para o bem comum.
    Se eles vendem ainda, é por qualidade, sim, mas, MUITO MAIS, por competência de alguns bons executivos bem relacionados.

    ResponderExcluir
  8. Guilherme,
    até agora, vc foi o que melhor explicou a questão. Mas concordo com o Oscar Daudt e tem dito isto desde o começo desta discussão. O problema são as bebidas muito tuins de todos os países que chegam aqui. Dando nomes aos bezerros: lambruscos, vinhos chilenos cheios de "pimentão" do Vale Central, dos periquitas, dos franceses de qualidade duvidosa, idem espanhóis, argentinos etc. E o grande problema não é taxação cobrada do vinho estrangeiro, é o custo sobre a produção nacional (em todos os setores!). Além disso, há a concorr~encia deleal do Mercosul. Nunca vi ninguém reclamar do preço de R$ 250 do Estiba Reservada da Catena Zapata, nem do caríssimo Almaviva. Mas já vi muita gente pagando R$ 20 por vinho chapinha argentino e chileno muito inferior a Leopoldos, Valontanos, Valdugas, Joaquins, etc.
    Abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro amigo Rodrigo,

      Concordo que há muita porcaria importada. Mas, como já disse no comentário que fiz acima, não houve essa segregação quando da apresentação do pedido de salvaguarda. Ficou tudo na "vala comum".

      Quanto ao Mercosul, os países dele integrantes, como a mencionada Argentina, não podem ser alvo do pedido de salvaguarda.

      Creio que esse debate está apenas começando. E é nosso papel trazer o maior número possível de pontos de vista, contribuindo para que a decisão acertada seja tomada, ao fim da investigação.

      Um abraço,

      Excluir
    2. Boa noite Guilherme e Rodrigo,

      É importante salientar que esses tais "bezerros" continuam sendo porta de entrada para 99% dos consumidores de vinhos "vacas grandes".
      Só podemos ter um enófilo a partir do momento que ele se inicie no mundo do vinho, e para isso esses "bezerros" são ÓTIMOS!
      É muito mais fácil convencer um cliente tomador de cerveja de 2$ a tomar um vinho de 15$. E sem por valores nos bezerros, não podemos mostrar vinhos diferenciados a um consumidor que não sabe o que está apreciando. Posso (e devo) estar enganado quanto ao mercado de vinhos nacionais de entrada, mas desconheço vinhos nacionais que agradem (dentro dos seus valores) mais um novo consumidor, que um simples chianti ou um simples beaujolais.

      Temos que lembrar que um tomador de Reservados e Lambruscos é um futuro consumidor de Bordeaux's, Piemonteses, e assim por diante.

      "Beba vinho, simplesmente VINHO."

      Abraços,

      Excluir
  9. Caro Guilherme;

    A extraordinária margem de lucro das importadoras, só pode ser proveniente de uma cosia chamada CARTEL, que elas devem fazer entre elas.

    Queria dizer, também que realmente como falou o leitor em cima de sua colocação, o vinho é também fruto de seu terroir, um Nebbiolo brasileiro n é um barbaresco. Parabéns por essa colocação, até agora foi a primeira argumentação desse tipo.

    Caro Oscar Daudt;

    Não, se eu quero degustar um barbaresco, eu n tenho que pagar caro, eu tenho que pagar caro se eu quiser dirigir um Mercedes produzido na Alemanha, ao invés de um carro produzido no Brasil. O Mercedes pode ser muito melhor, mas ambos servem a mesma finalidade, se locomover mais rápido em longas distâncias,etc. Diferente do vinho, se vc quer se embebedar tudo bem, ai é igual, qualquer coisa vale, mas se vc quer apreciar, não existe terroir igual, um NEBBIOLO NACIONAL, NUNCA SERÁ UM BARBARESCO e vice-e-verça. Não sou rico, n posso pagar 300 reais por um vinho, se vc é rico e quer excluir, está no caminho certo, eu quero pagar justo, quero pagar uma margem de lucro justa.

    Rodrigo Leitão, Periquita é um vinho honesto, ele é um bom vinho para o dia a dia. Inclusive, descobri com o professor da ABS que me dá aula, que ele resiste anos na garrafa, mais de dez, e continua em perfeito estado. Outra coisa, eu já reclamei, mas o Estibas Reservada custa 250 Pesos lá. Para os argentinos é como se eles pagassem os mesmo 250 Reais aqui. O Que não pode é ele custar, devido ao cambio, 250 Reais, deveria custar, 125 Reais, por ai. MARGEM DE LUCRO.


    Um abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro Pedro,

      As questões debatidas são realmente complexas e dão margem a todo tipo de posicionamento, concordemos com ele ou não.

      Obrigado pela sua colaboração e pelos elogios!

      Um abraço,

      Excluir
  10. Guilherme, melhor ponto de vista que li sobre o assunto.
    Parabéns!!
    Abilio Cardoso

    ResponderExcluir
  11. Guilherme,

    Seu artigo foi: Esclarecedor! Excelente artigo!

    Parabéns e sucesso!

    Ana Paula Breves

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Cara Ana Paula,

      Fico satisfeito por ver que o artigo foi útil!

      Obrigado,

      Abraço,

      Excluir
    2. Guilherme,
      Poderia fazer algum comentário sobre o Tema "Vinìculas unidas levam produtos ao exterior." Esta matéria foi comentada por Jorge Lucki, gostaria de saber a sua visão sobre o assunto.

      Grata
      Noeli

      Excluir
  12. Excelente artigo.

    Sou gaúcho e trabalho no mundo do vinho, e simplesmente na minha casa não entra mais vinho nacional e não freqüento mais restaurantes que sirvam vinho nacional.
    Meus amigos graças a Deus, aderiram também.

    Vamos nos mexer que essa porcaria de Salvaguarda não vinga!

    ResponderExcluir