terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Interpretação e intérpretes - Por João Malheiro Tavares de Pina

Hoje tenho o prazer de publicar um belo texto da autoria do amigo português João Tavares de Pina, enólogo e proprietário da vinícola Quinta da Boa Vista, no Dão, em Portugal. Boa leitura!
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Interpretação e intérpretes

Qualquer estratégia que se funde, que se oriente por caminhos estabelecidos por outros, estará sempre votada ao insucesso, porque nunca será autónoma, nunca trilhará caminhos independentes, nunca cativará ninguém, porque se limitará a percorrer trilhos já conhecidos, já gastos…A dificuldade está aqui mesmo. Numa época em que quase tudo já foi descoberto, em que basta saber copiar, ou transpor, ser suficientemente consistente e maduro para de forma livre, independente, e refractária se necessário decidir qual o sentido da interpretação que deveremos dar ao nosso “Terroir” sem que isso lhe retire a identidade e a originalidade, é maior desafio que um vitivinicultor pode ter pela sua frente.

Entendo que certas regiões, ainda novas na produção de vinhos de mesa, com pouca ou nenhuma consciência histórica, sem responsabilidades, sem raízes, que começaram a produzir vinhos de mesa há pouco tempo, (ou que os produziram até há bem pouco para engrossar volumes de outras que já tinham um carácter global), que ainda não tenham encontrado um estilo, o possam ir sempre alterando, com o objectivo de procurar sempre satisfazer os gostos em permanente mutação dos líderes de opinião e dos novos consumidores. O que não deixa de ser um grande desafio, e um caminho perfeitamente legítimo sem necessidade de qualquer justificação, porque é nesse nicho que se concentra a quase totalidade do consumo.

A maior dificuldade, num mundo de consumos e gostos completamente globalizados, está em sermos fiéis aos nossos princípios, em respeitarmos o legado histórico dos nossos antepassados, que se criou, que se fundou em séculos de experiência e não se deveria adulterar em função das permanentes alterações da moda (até porque, aqui, nesta fileira, a moda, também é recente, como o são os lideres de opinião e os produtos globais), respeitando integralmente o que a memória foi registando, para continuar a criar com paixão, vinhos únicos, que se possam distinguir em carácter e estilo, para poderem ser reconhecidos, para poderem ser realmente diferentes. Este é o único sentido, que pode levar um produtor de pequena dimensão, a fazer vinho. Em oposição, poderemos também apontar o preconceito, fundado nessa consciência, como um elemento estigmatizante da modernidade e da evolução, ou como factor limitador de progresso desses resistentes, mas por outro lado, ainda, mesmo nessas regiões, mais consistentes, mais adultas, com mais tradição, também surgiram novos interpretes, de origens completamente distintas e sobretudo com motivações sócio culturais e económicas completamente diferentes, totalmente despidos dos tais preconceitos anteriores (que não são mais do que uma consequência das memórias), e, como tal, encenando de forma completamente diferente, daquelas que até então eram observadas, sendo aqui, que reside a questão mais inverosímil de tudo isto, porque estes também foram condicionados por preconceitos, só que de outra natureza, completamente diversos, muito maiores e sobretudo muito mais redutores, porque não se fundavam nas raízes da sua consciência cultural, mas sim na moda, e o que até então era definidor do carácter de uma região deixou de o ser, e passou-se a abusar de madeira nova só porque era moda na América. Porque Bordéus já tinha também abdicado do seu estilo, e a passou a usar. Porque a moda nas regiões emergentes era essa: Porque os líderes de opinião, sobretudo os estrangeiros assim queriam, e os de cá anuíam. Porque, essencialmente, não era de vinho que gostavam, gostavam era de madeira, e a madeira no vinho (como a entendemos hoje, para maquiar), só surgia, só aparecia para substituir a velha ou para aumentar à capacidade de armazenamento de um produtor que pretendia fazer mais vinho ou que tinha tido uma colheita generosa, e como tal, surgia sempre diluída. Com a justificação de uma deficiente reestruturação, anteriormente realizada, promove-se outra mais redutora e mais intrusiva, que promoveu castas até aí pouco utilizadas, destruiu património vitícola, e sobretudo uniformizou os vinhos, e conduziu à sua massificação. Porque os vinhos tinham de ser carregados de cor, eliminaram-se castas que a não tinham em quantidade suficiente, independentemente dos seus outros atributos poderem ser bastante superiores aos daquelas que vieram a ser introduzidas. Se davam vinhos frescos e elegantes em virtude do seu carácter subtilmente vegetal, eliminavam-se. Interessava, sem respeitar mais nenhum princípio, eram, as que pudessem promover a densidade e a concentração, logo plantavam-se. Viraram quase tudo de pernas ao ar…

Pagámos para ser aculturados, pagámos para participar num processo liberal de destruição de tudo o que estava ligado ao passado, e numa região como o Dão onde se produz vinho de mesa há séculos, poucas ou nenhumas áreas de vinhas velhas se vislumbram, e pior do que isso, não se perscrutam sequer sussurros em que essa preocupação se manifeste, para se poder lançar um alerta e socorrer as poucas que resistiram ao vandalismo.

Tudo isto, juntamente com a sorte que tive de ter recebido um testemunho único, que transporto nas minhas memórias e nos meus ossos, também o carácter do “Terroir” que acarinho, moldado pelas diversas gerações de Tavares de Pina, me leva cada vez mais, a não abdicar do que estou a fazer, do meu estilo. Tenho ainda o privilégio de poder continuar a acompanhar os primeiros vinhos que fiz, criados num estilo clássico, e, sentir como evoluíram, e como são bons, para estabelecer que o caminho que vou trilhar é o da austeridade, da frescura, da elegância, da fruta fina e dissimulada, dos vegetais subtis, das notas terrosas e arbustivas, que origina vinhos de uma complexidade sem limite, de uma aptidão gastronómica sem paralelo e com níveis de saturação muito elevados, ou seja, vinhos muito gulosos, em permanente transformação, que se mimetizam continuamente, atributos que os distinguem de todos os outros que conheço, e que pretendo sejam cada vez mais evidentes. O respeito pelo “Terroir”, que é único em todos os aspectos, associado a um encepamento complemente distinto, em que a aposta, cada vez mais consistente na casta Jaen, é uma realidade, juntamente com a Rufete, outra mal amada, e a Touriga Portuguesa, que, nas nossas condições dificilmente assume perfis florais, associado a um ciclo muito longo, e, sobretudo a uma fase final de maturação deliciosamente prolongada, contribui de forma sublime para que a diferenciação desejada seja cada vez mais uma realidade.

Da colheita de 1997, felizmente, ainda preservamos na nossa garrafeira, uma largas centenas de garrafas, direi que quase um milhar. Para alguns, trata-se de uma obra-prima. Eu como sou mais modesto, saliento que é um vinho que me dá uma enorme satisfação; está vivo, com uma linda cor, ainda, com aromas extraordinariamente sãos onde não falta nada, é só questão de disposição. Entramos nele, emana juventude, dá voltas e cambalhotas sem parar, com uma alegria só comparável à de um poldro, que, soltamos depois de ter estado uns dias no estábulo, e não pára mais, energia interminável. Não para de se empinar, de galopar, de dar asas à alegria. Isto sim é vinho. E, esta é a minha interpretação deste vinho, que será certamente diferente das outras que lhe venham a fazer, já que as circunstâncias e o estado de espírito, ainda por cima, não vão ser as mesmas em que eu fiz esta. Casei-o, no meu almoço, com a frugalidade de algumas iguarias que a terra dá, e, a mão do homem molda. Uns grelos de nabo, dos cultivados somente com alguma matéria orgânica caseira, uma morcela fresca proveniente da matança do fim-de-semana. Fevereiro é o tempo delas e o porco cresceu com mimos. A combinação foi divinal. As minhas memórias enriquecidas, e a determinação mais consistente, tal como as vinhas que produzirão a próxima colheita.

É isto que faz com que a afirmação do “Terroir” seja um processo irreversível, o tempo passa, mas as suas marcas, mesmo indeléveis, dão-lhe sempre mais sentido…

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